2017, 20 anos Sobrevivendo no Inferno
Em dezembro de 1997 os Racionais MC’s jogam na rua aquele que talvez tenha sido o disco que mais influenciou o rap nacional, é que agora em 2017 completa 20 anos de barulho. Bem vindos ao Sobrevivendo no Inferno.
Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay iniciam o álbum com uma releitura de Jorge Ben, com Jorge da Capadócia, em cima da base “Ike’s Rap II” do cantor estadunidense Isaac Hayes, leda da disco, do funk, do soul e R&B.
Em seguida Mano Brown declama sua poesia na faixa Genisis, uma vinheta de apenas 23 segundos, onde manda a letra:
“Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu? Eu tenho uma bíblia véia, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno”.
A terceira faixa, desse que é o quarto disco dos Racionais, leva o estratégico nome Capitulo 4, Versiculo 3, antes do som começar, seguem algumas estatísticas sobre o negro no Brasil:
“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial; a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros; a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo; aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”
Em seguida com o sample Slippin’ Into Darkness do grupo War, de funk da Califórnia e é em cima da batida de Sneakin’ In The Back de Tom Scott & LA Express que Brown manda a bronca:
“Minha intenção é ruim, esvazia o lugar! Eu tô em cima, eu tô a fim, um dois pra atirar! Eu sou bem pior do que você tá vendo Preto aqui não tem dó, é cem por cento veneno! A primeira faz “bum!”, a segunda faz “tá!” Eu tenho uma missão e não vou parar! Meu estilo é pesado e faz tremer o chão! Minha palavra vale um tiro, eu tenho muita munição! Na queta ou na ascensão, minha atitude vai além! E tem disposição pro mal e pro bem! Talvez eu seja um sádico ou um anjo Um mágico ou juiz, ou réu Um bandido do céu!”
A faixa tem a voz marcante do Edi Rock, que complementa o discurso com:
“Quatro minutos se passaram e ninguém viu, O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil! Talvez um mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo, que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos! O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol ou o que vende chocolate de farol em farol! Talvez o cara que defende o pobre no tribunal, ou que procura vida nova na condicional. Alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela, ouvindo o rádio velho, no fundo de uma cela! Ou da família real e negro como eu sou, um príncipe guerreiro que defende o gol!”
KL Jay junta seus conhecimentos musicais em sampler’s que compõem uma batida trip hop com marcantes notas de piano, naquilo que virou uma trilha sonora dos rolês periféricos.
Na música 4, Tô Ouvindo Alguém me Chamar, ou como ficou conhecida, a música do Guina, com seus 11 minutos e 15 segundos, um dos raps brasileiros mais longos, com o sample da música “Charisma”, de Tom Browne, é narrada a história:
“Pela primeira vez vi o sistema aos meu pés.
Apavorei, desempenho nota dez. Dinheiro na mão, o cofre já tava aberto. O segurança tentou ser mais esperto, então. Foi defender o patrimônio do playboy, cuzão. (tiros) Não vai dar mais pra ser super-heroi. Se o seguro vai cobrir (hehe), foda-se, e daí ? Hamm… O Guina não tinha dó. Se reagir, bum, vira pó.”
Quinta música Edi Rock mostra seu vozerão em Rapaz Comum, que começa com a um jogo do Santos na TV, até que alguem toca a campanhia, em seguida vários tiros são disparados, e a letra em cima da base do Public Enemy, “Black Steel in The Hour of Chaos”, se desenrola:
“Meu Deus! Eu não sei mais o que é pior. Mentir a vida toda pra si mesmo. Ou continuar e insistir no mesmo erro. Me lembro de um fulano: ”mata esse mano!” Será que errar dessa forma é humano? Errar a vida inteira é muito fácil. Pra sobreviver aqui tem que ser mágico. Me lembro de várias coisas ao mesmo tempo. Como se eu estivesse perdendo tempo.”
KL Jay mostra sua genialidade ao samplear o próprio Racionais com “Mano na porta do bar”, logo depois dos scratch's se ouve: “a lei da selva é assim, predatória preserve a sua glória”.
A Faixa 6 é instrumental, orquestrado pelo Edi Rock, e se chama reticências, assim “…”. Não há letra, apenas a experiência de bitmaker do Edi Rock.
Próxima música é o clássico Diário de um Detento, parceria da letra de Mano Brown com Jocenir, que foi um interno do complexo do Carandiru e escreveu o livro de mesmo nome da canção. O rap narra a vida do presidio, no ponto de vista de um detento, até o conflito conhecido como o “Massacre do Carandiru”:
“Lamentos no corredor, na cela, no pátio Ao redor do campo, em todos os cantos Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã Aqui não tem santo Rátátátá preciso evitar Que um safado faça minha mãe chorar Minha palavra de honra me protege pra viver no país das calças bege Tic, tac, ainda é 9h40 O relógio da cadeia anda em câmera lenta Ratatatá, mais um metrô vai passar Com gente de bem, apressada, católica Lendo jornal, satisfeita, hipócrita Com raiva por dentro, a caminho do Centro Olhando pra cá, curiosos, é lógico Não, não é não, não é o zoológico Minha vida não tem tanto valor Quanto seu celular, seu computador Hoje, tá difícil, não saiu o sol Hoje não tem visita, não tem futebol Alguns companheiros têm a mente mais fraca Não suportam o tédio, arruma quiaca Graças a Deus e à Virgem Maria Faltam só um ano, três meses e uns dias”
O sample da música fica por conta “Easin’ In” do Edwin Starr e de “Mother’s Son” do Curtis Mayfield. Vale lembrar que a música conquistou os prêmios de Melhor Videoclipe de Rap e Escolha da Audiência do Video Music Brasil (VMB) de 1998.
Na faixa 8 os Racionais fazem uma homenagem ao GOG, na música Periferia é Periferia em Qualquer Lugar, com vários samples do Poeta do DF, como “aqui a visão já não é tão bela”, “muita pobreza, estoura violência”, “vários botecos abertos, várias escolas vazias”, “mães chorando, irmãos se matando”, além do próprio titulo ser utilizada por GêóGê ná música Brasília Periferia do disco Dia a Dia da Periferia. Aqui Edi Rock manda a letra:
“ Esse lugar é um pesadelo periférico Fica no pico numérico de população De dia a pivetada a caminho da escola A noite vão dormir enquanto os manos “decola” Na farinha… hã! Na pedra… hã! Usando droga de monte, que merda, hã! Eu sinto pena da família desses cara Eu sinto pena, ele quer mais, ele não pára Um exemplo muito ruim pros moleque Pra começar é rapidinho e não tem breque Herdeiro de mais alguma Dona Maria Cuidado senhora, tome as rédias da sua cria Porque chefe da casa trabalha e nunca está Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar”
A inspiração para a base veio do sampler de “Cannot Find a Way”, do Curtis Mayfield.
A faixa 9 é outro sucesso, Qual Mentira vou Acreditar também na voz de Edi Rock, com trechos de Ice Blue, e ainda pode-se escutar o Brown no refrão “A noite é assim mesmo…”, Enquanto que KL Jay comando os toca discos na base de Hip Dip Skippedabeat, do grupo Mtume. A letra mais debochada, ao som do funk, conta sobre as mentiras que um rolê na noite podem ser geradas:
Mudando as estações de rádio no rádio do carro, escutamos: “Chegou a Hora”, do Boi Garantido, e “Pode vir quente que eu estou fervendo”, do Barão Vermelho.
“São apenas dez e meia, tem a noite inteira Dormir é embaçado, numa sexta-feira TV é uma merda, prefiro ver a lua Preto Edy Rock Star a caminho da rua Hã… sei lá vou pruma festa, “se pam” Se os cara não colar, volto às três da manhã Tô devagar, tô a cinquenta por hora Ouvindo funk do bom, minha trilha sonora A polícia cresce o olho, eu quero que se foda! Zona Norte a bandidagem curte a noite toda Eu me formei suspeito profissional Bacharel pós-graduado em “tomar geral” Eu tenho um manual com os lugares, horários, de como dar perdido”.
Ainda podemos ouvir um trecho de “Esquinas”, do Djavan, em um devaneio do Ice Blue.
A próxima faixa, é a de número 10, Mágico de OZ, na letra de Edi Rock, que fala sobre os meninos de rua, e tem na base sampler de “It’s too late”, do The Isley Brothers, a melodia de plano de fundo para a poesia:
“Aquele moleque, que sobrevive como manda o dia a dia Tá na correria, como vive a maioria Preto desde nascença, escuro de sol Eu tô pra vê ali igual, no futebol Sair um dia das ruas é a meta final Viver decente, sem ter na mente o mal Tem o instinto que a liberdade deu Tem a malicia, que cada esquina deu Conhece puta, traficante e ladrão Toda raça, uma par de alucinado e nunca embaçou Confia neles mais do que na polícia Quem confia em polícia?”
Na música 11, Brown retoma o microfone na Fórmula Mágica da Paz, fazendo uma retrospectiva de sua vida em cima do sample de “Attitudes”, do grupo The Bar-Kays e em alguns trechos KL Jay homenageia o mestre Tim Maia, com “Me dê Motivos”. Então seguindo a filosofia da música que malandragem é viver, a reflexão fica assim:
“ Essa porra e um campo minado. Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui, mas, aí, minha área é tudo o que eu tenho. A minha vida é aqui e eu não consigo sair. É muito fácil fugir mas eu não vou. Não vou trair quem eu fui, quem eu sou. Eu gosto de onde eu vou e de onde eu vim, ensinamento da favela foi muito bom pra mim. Cada lugar um lugar, cada lugar uma lei, cada lei uma razão e eu sempre respeitei, em qualquer jurisdição, qualquer área. Jardim Santo Eduardo, Grajaú, Missionária. Funchal, Pedreira e tal, Joaniza. Eu tento adivinhar o que você mais precisa. Levantar sua “goma” ou comprar uns “pano”,um advogado pra tirar seu mano. No dia da visita você diz que eu vou mandar cigarro pros maluco lá no X.”
E os Racionais fecham o disco Sobrevivendo no Inferno da mesma forma que abriram, com a base de “Ike’s Rap II”, do Isaac Hayes, onde o grupo manda um Salve pelas várias quebradas onde o grupo passou e também para “os manos que estão do outro lado do muro, as grades nunca vão prender nosso pensamento!”, além do Brown avisar os “filha da puta que querem jogar sua cabeça para os porcos: tenta a sorte”. Ai sobra tempo pra lembrar de Jesus Cristo:
“ eu acredito na palavra de um homem de pele escura, de cabelo crespo, que andava entre mendigos e leprosos, pregando a igualdade… Um homem chamado Jesus…só ele sabe a minha hora Ai ladrão, tô saindo fora Paz…”
Assim fecha um dos álbuns mais épicos da música brasileira, e um dos melhores do rap nacional, os Racionais já eram grandes, mas esse disco tornou o grupo gigante. O disco foi lançado por uma gravadora independente, a Cosa Nostra, criada para gravar grupos como o Racionais, RZO e Conexão do Morro. O disco vendeu 1.500.000 cópias e considerado pela revista Rolling Stones como um dos 100 Melhores discos dá música brasileira, ocupando o 14° lugar na relação. Em oportunidade de visitar o Vaticano, o então prefeito de São Paulo Haddad presenteou o Papa Francisco com uma cópia do vinil.
Faixas do álbum
1. “Jorge da Capadócia” (Mano Brown) — 2' 48
2. “Genesis (Intro)” (Mano Brown) — 0' 23
3. “Capítulo 4, versículo 3” (Mano Brown) — 8' 09
4. “Tô ouvindo alguém me chamar” (Mano Brown) — 11' 09
5. “Rapaz comum” (Edy Rock) — 6' 25
6. “ …” (Edy Rock) — 2' 33
7. “Diário de um detento” (Mano Brown / Jocenir) — 7'31
8. “Periferia é periferia (em qualquer lugar)” (Edy Rock) — 6' 01
9. “Qual mentira vou acreditar” (Mano Brown / Edy Rock) — 7' 42
10. “Mágico de Oz” (Edy Rock) — 7' 38
11. “Fórmula mágica da paz” (Mano Brown) — 10' 40
12. “Salve” (Ice Blue/Mano Brown) — 2' 15